Ainda que as mentalidades estejam a mudar, e estão, há um longo caminho a percorrer para que a mudança de um paradigma seja uma realidade. E a história de Ana Leal, treinadora de futsal da equipa masculina do Desportivo da Ordem, comprova-o. Num desporto em que se vive muito num “Mundo de homens”, ainda há muitos com dificuldade para aceitar uma mulher no banco. “Há homens que ainda não estão preparados para ouvir uma mulher falar alto, há homens que não estão preparados para ver posta em causa uma decisão tomada e homens que não estão preparados para ver uma mulher liderar. Os meus atletas respeitam-me sempre, mas os adversários nem tanto. Tive um episódio com um atleta de uma equipa adversária que disse a um jogador meu que para ele seria impossível ter uma mulher como treinadora, que estava farto de me ouvir e que à terceira… A minha mãe ouve muita coisa da bancada. Já tenho pensado várias vezes se vale a pena continuar”, atira Ana Leal, treinadora que lidera atualmente a equipa que fechou a Série 2 da segunda fase da Divisão de Elite da Associação de Futebol do Porto no primeiro lugar.
Em 2020/21, Jorge Furtado e Salvador, presidente e diretor desportivo do Desportivo da Ordem, respetivamente, decidiram convidar Ana Leal para treinar a equipa masculina e de então para cá, os bons resultados têm sido uma realidade. “Para nós foi fácil. Contratar a Ana só tem uma razão de ser: competência. Conhecia o trabalho dela há mais de 10 anos. Nem pensei se era mulher, ou não, e chego à conclusão que foi a melhor decisão que tomei até em todos os aspetos. A minha convicção era tanta que não ia deixar sair a Ana daqui sem ela aceitar”, conta Salvador. A própria não sabia ao que ia, quando recebeu a chamada e não escondeu a surpresa, na reunião que teve na altura com aquele dirigente. “Achava que seria para um projeto feminino. Depois ouvi-os a dizer: Não sai daqui enquanto não aceitar ser treinadora dos seniores masculinos. E eu respondi, vocês andaram a beber? Se for para ajudar alguém podem contar comigo, de outra forma está fora de questão. Estive a treinar formação, tenho uma excelente equipa, conquistamos vários títulos, mas nunca treinei seniores, nem femininos, nem masculinos. Esqueçam!”
Pelo caminho, o presidente Jorge Furtado tem acrescentado “confiança” à “competência”. “Em dois meses de pré-época fizemos vários jogos e não ganhamos um único. Noutro clube, o treinador saía na hora, mas aqui não!” Mas a desconfiança, e não só, levou a mudanças profundas. “No dia em que aceitei o cargo tinha 14 atletas, uma semana depois já só tinha seis. Tive de ir buscar jogadores ao futebol de 11 para formar a equipa”, conta Ana Leal. “Os atletas duvidaram, menos os que tinha trazido comigo, que conheciam a minha forma de trabalhar. Para mim os resultados da pré-época não dizem nada. Faço por defrontar equipas mais fortes para perceber em que patamar estamos. Mas alguns atletas não deixaram de ir queixar-se ao presidente e o diretor desportivo”, lembra ainda. O cenário tinha tudo para resultar em desastre. “Foi difícil, mas na minha vida tem sido sempre assim. Lutei sempre para ser o que sou hoje. Já estava habituada a ser um alvo a abater”, frisa, antes de concordar que uma mulher, naquelas circunstâncias, tem de lutar o dobro, ou o triplo para se afirmar. “Tem! A mulher tem de apresentar resultados imediatamente”, dispara Ana Leal. “Tem, mas aqui não!”, cortam, em uníssono, o presidente e o diretor desportivo.
Sem adeptos nas bancadas por causa da pandemia, a pressão surgiu de outros lados. “Senti a dúvida, quando olhavam para mim. Com os atletas que tive 12 anos consecutivos, sabia que não tinha de lhes provar nada para confiarem em mim, sabiam o que eram antes, como ficaram depois e onde chegaram a trabalhar em conjunto. Mas é o olhar da dúvida que tinha em cima de mim”, lembra. A direção de Jorge Furtado é que nunca deixou de apoiar. “Antes do campeonato começar, chamei-os para conversar várias vezes. Perguntava: Têm a certeza do que vamos fazer? Ainda não ganhamos jogo nenhum… preciso de tempo, não sei se estarão prontos a tempo. Tinha arrancado a equipa com seis, formou-se o grupo com alguns jogadores que nunca tinham ouvido falar em futsal, miúdos que iam jogar pela primeira vez num campeonato de seniores e que iam ser atirados aos leões na Elite”, partilha a treinadora.
Até que o Desportivo da Ordem se estreia a vencer na primeira jornada do campeonato de 2020/21. “Defrontamos o Granja, logo um dos pretendentes à subida, e vencemos 6-2. Os céticos começaram a ficar convencidos”, conta Salvador, com uma satisfação indisfarçável. “Nesse jogo tínhamos o capitão da equipa lesionado e no final recebi uma mensagem dele a pedir-me desculpa, dizia que as dúvidas eram normais, mas que tinha visto o dedo de treinador na vitória”, conta Ana Leal, que nunca pensou em desistir, admitindo apenas defender o clube cedendo o protagonismo no banco. “Ainda pensei em colocar o meu lugar à disposição para que o clube não sofresse com o preconceito, sim, para ficar na retaguarda de uma voz que fosse de liderança”, conta, mas isso só não aconteceu, porque a direção nunca deixou de lhe manifestar confiança: “Todos os dias ouvia dizer: ninguém lhe está a pedir resultados. Tiraram-me a pressão. Diziam, você é que se está a pôr no fio da navalha, não queremos saber de resultados para nada, queremos que os ponha a jogar”.
Ana Leal já viveu de tudo de então para cá, desde jogos em que acaba protegida pela GNR, a situações em que jogadores a acompanharam fora do pavilhão, ou protestos com as arbitragens, ao fim e ao cabo, como muitos treinadores por esse país fora, que vibram com paixão e que, no calor do jogo acabam por chegar aos limites. Mas o que não gosta de ver posto em causa é o seu trabalho. “Sou apaixonada por tudo o que faço e é isso que me faz ter coragem para aceitar desafios destes, ultrapassar fases más e acreditar sempre que as coisas vão acabar por se compor. Mas se não vier para aqui, isto nunca vai mudar. É por isso que me dá gozo continuar. Só tenho duas derrotas na primeira fase, em jogos em que não estive no banco, em que estive a cumprir suspensão. Mas tenho a certeza de que podia ter ajudado mais no banco”, garante a treinadora que também não teve uma infância fácil: “Cresci na rua, com os meus amigos, fui criada pela minha mãe, gostava de jogar à bola, era uma maria-rapaz. Mas já nas minhas composições, na escola, dizia que ia ser professora de ginástica e consegui com muitos sacrifícios da minha mãe. Cresci a pulso, sou exigente com os outros, mas acima de tudo comigo própria”.
Não tarda, volta ao futsal: “A seguir à vitória sobre o Bom Pastor, ouvi dizer que era levada ao colo, que o presidente pagava para ganharmos e outras coisas piores. Mas as pessoas não fazem ideia do trabalho que isto dá, não sabem nada. Não tenho tratamento especial, bem pelo contrário. Mas já tive árbitros a pedirem-me desculpa, por erros que admitiram”. Habituais são os vídeos que manda de madrugada. “Vejo duas e três vezes os nossos jogos ao domingo, em pijama. Tenho aqui [mostra o telemóvel] vídeos cortados, que envio aos jogadores de madrugada com comentários. Não procuro culpa nas arbitragens, mas nos meus atletas, mesmo quando ganham o jogo. Depois, do nada, recebe mensagens de reconhecimento: “No dia 20 de março, às 2h00 da madrugada [mostra no telemóvel], recebo a seguinte mensagem: “Somos os maiores (sorrisos). Nunca vi tanta competência, vontade de vencer e espírito humano juntos, numa só pessoa. Obrigado a ti por seres minha treinadora e minha líder, obrigado por me fazeres melhor pessoa e me dares sempre mais vontade de vencer. Somos mesmos os melhores!” A mensagem é de um dos capitães de equipa, de 32 anos, um dos que já ganhou tudo, mas é também a prova de que o reconhecimento tarde, mas chega.