Ramaldense centenário promete continuar a sobreviver


“Cinzento” é o nome do gato-mascote, que mora no patamar de umas escadas exteriores que dão acesso à sede do Ramaldense FC. À hora da nossa reportagem, o calor devia ter levado o “Cinzento” a procurar um local mais fresco, porque mal se abriu a porta da sede do clube centenário, uma baforada de ar quente envolveu o ambiente. Mas é ali que a história do clube repousa entre troféus a precisarem de restauro, diplomas amarelados pelos tempo e faixas de campeões com inscrições que foram perdendo o brilho de outrora. No corredor que conduz à sala de reuniões, galhardetes desbotados testemunham histórias que lutam contra o tempo para se manterem à tona da memória, um pouco como a história do Ramaldense FC que, em ano de centenário, segue ancorado na paixão de quem sempre respirou o ar daqueles corredores de tabique e lutou contra o fim. “Enquanto for presidente, este clube não vai fechar portas. Enquanto tiver saúde, o Ramaldense é como um familiar, vamos cuidar dele até ao fim”, garante Joaquim Novais, presidente do clube há 13 anos.

Em 2004, quando o campo Alberto Araújo fechou por causa da pressão imobiliária sobre os terrenos, a continuidade do Ramaldense FC esteve por um fio. “Aí o clube esteve para fechar portas, porque chegamos ao final da época sem saber do futuro. Mas nessa altura apareceu o senhor Manuel Maio [presidente da junta de freguesia], que nos ajudou com um acordo com o INATEL, para jogarmos no pelado”, contou.

Do cimo das escadas que dão acesso à sede, as casas terreas ligadas por ruelas estreitas ainda retratam as antigas ilhas que alimentavam o clube de adeptos, em tempos em que muitos daqueles espaços também eram campos de lavradores e era frequente ver os bois pastar. “Aqui à volta, há umas décadas atrás, era tudo campo, mas com o tempo desenvolveu-se tudo. Construíram a zona industrial e depois surgiu comércio e serviços, mas quem nos ajudava mais era a Volvo. Embora nunca se tenham conseguido grandes apoios com a zona industrial. Os que nos ajudam mais, ainda assim, são as casas de comércio local, como o Pingo Doce, a farmácia, a pequena oficina das lavagens e a padaria Jamor”, lamenta. “Mas os que cá estão são os que gostam do Ramaldense. Estar à espera dos mais novos para dar seguimento não será fácil acontecer. É preciso gostar disto. Ultimamente temos tentado arrastar alguns jogadores que terminam a carreira, mas eles dizem que ser dirigente não é para eles. O que tem acontecido é que na hora da verdade ninguém quer assumir”, acrescenta ainda Joaquim Novais.

Nas paredes da sede não faltam retratos do passado, grande parte a preto e branco, onde ainda se vislumbram protagonistas históricos. “O Ramaldense está vivo porque não se meteu em loucuras”, fez questão de sublinhar. “Esta gestão pode ser pobre, como muitos a apelidam, mas é honesta. Os nossos jogadores não ganham nem prémios de jogo, é amadorismo puro. Nunca prometemos nada a ninguém e sou presidente há 13 anos. O dinheiro é pouco, mas sempre foi assim, por isso ninguém estranha”, frisou. “Mas também já recusamos propostas malucas de um empresário brasileiro que dizia que punha aqui cinco jogadores e que fazíamos uma equipa para subir por aí a cima. Tudo por uns milhares de euros por mês… depois sei como ia ser, punham os jogadores a dormir aqui na sede para não lhes pagar quartos e um dia abandonavam o barco e deixavam-nos cheios de dívidas. Mas não, não estamos à venda”, assegurou.

Arranjar soluções para os problemas tem custado menos graças ao apoio da Câmara Municipal do Porto e de alguns programas de retoma desportiva, que surgiram com a pandemia. “Temos um apoio da Ágora que servia para ajudar a pagar a dívida do aluguer pelo campo do INATEL à PortoLazer. Desde a pandemia, a Ágora deixou de enviar esse dinheiro, entretanto também resolveram suspender os pagamentos e, sinceramente, até gostava que continuasse assim, porque o valor do aluguer do campo é exorbitante. Um jogo da formação fica-nos por uns 70 euros, some-lhe os outros jogos todos que fazemos e percebe-se facilmente que se torne incomportável”, conta Joaquim Meireles, vice-presidente do clube. Nos últimos anos, a autarquia do Porto tem sido essencial. “Hoje há uma maior proximidade com a Câmara Municipal do Porto. Passamos uns anos difícieis porque o antigo presidente não queria saber nada de associações, ranchos ou clubes. As ajudas nunca chegaram ao Ramaldense. Mas agora sentimos mais o apoio e isso ajuda-nos”, reconheceu o dirigente.

Com o programa do centenário, que será encerrado com o lançamento de um livro com a história do clube, os dirigentes do Ramaldense esperam não só continuar a chamar a atenção, como poder contar com Humberto Coelho, antigo jogador do clube, durante os festejos. “O Humberto Coelho, mas também o Júlio, são as maiores figuras que passaram pelo clube, ainda os vamos convidar para cerimónias que vão decorrer até ao final do ano.

Mas também não nos podemos esquecer do senhor Adriano Pinto, antigo presidente da Associação de Futebol do Porto, que também foi presidente do Ramaldense e ajudou muito o clube. Lembro-me de um dia – em plena década de 80 – estávamos com dificuldades para inscrever jogadores na associação e liguei para casa dele à hora do almoço, precisamente, no dia em que encerravam as inscrições. Disse-lhe que não tínhamos dinheiro para inscrever os jogadores e ele respondeu-me que ia dar o aval na associação para o fazermos e que depois resolvia isso. Foi assim, com a ajuda dele, que conseguimos inscrever os atletas, portanto já havia dificuldades no Ramaldense, nessa altura”, contou Joaquim Meireles.

Falar de projetos ao cabo de 100 anos de história, num contexto em que as limitações são imensas, parece paradoxal, mas percebe-se que os corações ramaldenses se deixam arrastar pela paixão que se reacende a cada convívio com veteranos do clube. “Projetos? Bem, primeiro, não deixar morrer o clube. Recuperamos o boxe entretanto e, já durante as comemorações dos 100 anos com antigos jogadores de hoquei em campo, percebemos que podemos ter de nos meter numa dor de cabeça se decidirmos reativarmos o hoquei em campo com a ajuda de alguns veteranos. Vamos ver se alguém se chega à frente para isso”, comentou o presidente, Joaquim Novais.

Por fim, sobrou a curiosidade de descodificar uma expressão do futebol português que se ouve a cada passo, ainda hoje, nos campos dos distritais. Afinal, o que se quer dizer quando se fala em “Ponta pé para o ar, à Ramaldense!” “Antigamente, dizia-se isso, porque os bois de Ramalde tinham uns cornos muito bonitos e muito grandes. Diziam que era a terra dos cornos grandes e qualquer chuto para o ar dizia-se que era para desviar a bola dos cornos grandes”, termina Joaquim Meireles por entre uma risada saborosa.