Ouvir falar o mister Carlos Antunes da conquista do título da Divisão de Elite de futsal, é deixar falar a paixão, quase com rédeas soltas. As palavras brotam-lhe misturadas com a emoção de quem conseguiu um milagre de que nem o próprio acreditava que fosse possível, quando aceitou treinar o Bom Pastor. Depois de se ouvir a história daquela que foi uma temporada muito desgastante, percebe-se que muitos teriam atirado a toalha ao chão bem cedo. Mas o que transparece é a inteligência de quem soube canalizar uma identidade muito própria para levar a equipa superar-se a cada jogo e em cada fase que alcançou. A juntar a tudo isso houve ainda que lidar com o estigma da pertença a um bairro. “Não foi fácil!” confessa Carlos Antunes, “porque as coisas pegavam fogo muito rapidamente”.
Mas o lado positivo dessa mesma pertença a um bairro é também o que ajuda a contar esta história de sucesso. “Foram muitas horas perdidas, muito suor, muita luta, raça e união. Foi no balneário que discutimos tudo. A certa altura, disse aos jogadores: ou vão para ajudar, ou não dá. Dizia-lhes logo que os tirava para se acalmarem. Agora, também é verdade que se não fosse esta identidade de jogadores de bairro, não tínhamos conseguido, não teria sido possível. Cortes de carrinhos, levar com bolas, acabarem todos pisados, cheios de marcas no corpo… é essa a nossa identidade. No fim só tenho de lhes agradecer, porque não ganham nada. Recebem uma bifana no final do jogo e alguns nem vão lá. Nem daqui por uma década o Bom Pastor volta a ganhar um título. Mas este vencemos na raça do jogador de bairro”, conta Carlos Antunes, convicto.
Puxando a fita atrás, quase apetece dizer que há montanhas que se perfilam bem mais altas do que o Evereste. “O campeonato começou a 18 de setembro e nós só começamos a treinar a 2, porque não tínhamos pavilhão. Fizemos quatro treinos e fomos a jogo. Acabarmos como campeões é incrível, mas só nós sabemos as dificuldades por que passamos. Somos campeões da Elite, isso ninguém nos tira”, conta. No meio das dificuldades, não era fácil descodificar o caminho para o sucesso. Mas os sinais, ainda que pouco percetíveis, foram aparecendo.
“Na segunda fase só perdemos contra a Ordem, mas vencemos as outras todas e ficamos em segundo. O favorito sempre foi o Ordem e digo-o sem sacudir a responsabilidade, porque nem precisava. Foram jogos importantes, porque nos ajudaram a olhar para os outros e pensar que tínhamos equipa para eles, porque perdemos com o Ordem quase sempre no detalhe. Mas é inquestionável que têm qualidade e melhores condições”, reconhece o treinador.
O que nunca os largou foi a fama de serem do bairro do Bom Pastor. “Sofremos com isso, sim. Não foi fácil. Muitos jogadores tinham vindo do bairro do Viso e conseguimos criar uma família. Mas no pavilhão era complicado. Sabiam que ferviam em pouca água. Então perguntei-lhes o que queriam disto, porque não se conseguia jogar. Era sempre na base do berro, do empurrão, ou do insulto até vindo da bancada, bastava uma faísca dessas com um jogador nosso para isto pegar fogo. Não dava. Mas começamos a mudar essas atitudes. Sem o Carlos Costa, conhecido como Calon, que é meu adjunto, teria sido impossível, mas juntos conseguimos, a pouco e pouco”, relata o mister.
Conseguir chegar ao final da temporada, continua a não ser um passeio. As dificuldades estão sempre lá. “Nem sei dizer... Temos sete jogadores e dois guarda-redes para concluir a temporada. Foi uma época desgastante a todos os níveis. De 14 jogadores passamos para 10, depois uns foram-se embora, outros chatearam-se e fomos à final com nove jogadores. Na final optamos por jogar com a maturidade e a experiência. Ganhamos bem, todos foram unânimes, mas recentemente voltamos a defrontar o Ordem e levamos um amasso (1-5), naturalmente, porque é a melhor equipa”, lembra o mister.
Preparar a equipa tem sido outra história, ainda mais desafiante. “Estivemos praticamente parados quase todo o mês de maio, porque não tínhamos jogadores suficientes para treinar, tivemos alguns lesionados e apareciam dois ou três aos treinos. Foi sempre assim, nunca treinamos com 10. Mas chegam ao jogo e é impressionante. Agora, se nos vissem a treinar, ninguém acreditava que poderíamos ser campeões. Foi muito desgastante. Na final, no balneário, disse aos meus jogadores que tínhamos de ganhar por nós e por mais ninguém. Apesar de ser um bairro complicado, onde se arranjam muitas confusões, fomos para lá para mudar o paradigma. Quisemos mostrar que éramos uma equipa capaz de lutar com os outros e não só. Antes da fase de apuramento de campeão, manifestei o desejo de ver mudar as arbitragens e, coincidência, ou não, o certo é que mudaram para melhor”, congratula-se.
Depois de uma temporada como esta, Carlos Antunes levanta muitas interrogações em relação a uma carreira que já vai longa no futsal. “O Bom Pastor nunca tinha conseguido ganhar um título. Hoje, este título da Elite, para nós, é o topo. Deveria ser a alavanca para a próxima temporada, mas nem sei se vai continuar a mesma direção. Ouve-se muita coisa. O presidente tem de perceber que não pode fazer tudo sozinho. Nem imagino se subíssemos. Não há estrutura, por isso dizia que devíamos ganhar por nós. A família é muito importante, já não tenho idade para me chatear com a minha mulher por causa disto.
Desde que começou a época, são 10 meses, é muito tempo e muito desgaste”, aponta. Mas o que o mister não consegue disfarçar é a satisfação de ter conseguido um título de que nunca mais vai esquecer o sabor. “Lembro-me que quando aceitei treinar o Bom Pastor ouvia amigos e conhecidos meus dizer que eu não sabia onde me ia meter. Mas fui porque conhecia o grupo e a pessoa que me tinha convidado. Ganhamos e dá-me um gozo tremendo. Ainda ando a pensar meter alguma coisa na minha página de Facebook para responder a essa gente. Só o gozo que me dá já é bom. Alguns nem me deram os parabéns, mas penso que o troféu fala por mim, só nós sabemos o gosto que isso nos dá!”.