Êxito no futsal é apenas a ponta do icebergue


Definir o ADC Santa Isabel com a subida à Divisão de Elite de Futsal poderia ser um caminho, mas seria demasiado redutor para um clube que vem intervindo na sua comunidade como poucos, desde que os seus responsáveis formaram uma IPSS e arregaçaram as mangas para responder a uma série de problemas sociais em Canelas. O projeto criado tem corrido com tanto sucesso, que a Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia já contactou os seus responsáveis no sentido de o replicar em todas as freguesias do concelho. Mas vamos partes.

Hoje, todos reconhecem que a vitória na final que carimba a subida do ADC Santa Isabel à Divisão de Elite começou bem antes disso tudo e que os laços entre todas as secções do clube foram essenciais, nomeadamente o peso que jovens com deficiência tiveram na vitória da equipa de futsal. “No dia da final, os nossos seniores, pouco despertos para estas coisas do social, foram convidados para um almoço diferente. Sentíamos que era preciso algo mais e nesse dia, os miúdos prepararam-lhes o almoço. Hoje estamos convencidos que foi importante, porque teve impacto emocional nos jogadores. Os jovens tocaram e cantaram para eles, serviram-lhes o almoço, tiraram fotos com eles e os jogadores perceberam o espírito, perceberam que isto é mais do que um clube de futsal. Acho que funcionou, mexeu, os jogadores confessaram-nos isso, mais tarde. Não estavam habituados, por exemplo, a ouvir um miúdo com trissomia 21 declamar poesia. Foi impressionante, todos ficaram de olhos arregalados, tudo em silêncio a ouvir”, conta João Paulo Silva, presidente do clube.

Mas o ADC Santa Isabel é isto e muito mais. São 460 os utentes que preenchem uma série de atividades ao longo da semana, no Centro Cultural de Canelas. “Temos uma academia sénior com 43 pessoas que praticam natação, pilates, têm aulas de informática, artes e língua portuguesa”, acrescenta. “Isto surgiu da necessidade que havia na freguesia de gente que estava aposentada e queria voltar a poder sentir-se útil”, explica ainda o presidente.

O projeto que envolve jovens deficientes foi outro desafio que o ADC Santa Isabel assumiu com sucesso, em resposta ao problema que deixava esses mesmos jovens fora da escola aos 18 anos. “Neste projeto que chamamos ‘Sim somos capazes’ procuramos dar ferramentas a jovens deficientes que já são velhos para estar na escola e que não conseguem entrar no mercado de trabalho, porque não têm competências. O objetivo é encontrar em cada um aquilo que gostam de fazer para aprender uma profissão”, revela. “Temos o caso de uma jovem que queria ter uma lavandaria e montamos uma nas nossas instalações para que pudesse aprender. Trazemos todos os nossos equipamentos e roupas para ela lavar, aprender com isso, e se for algo que consiga fazer, a ideia será montarmos uma lavandaria lá fora, um negócio que sairá daqui. Entretanto, já temos um jovem num supermercado e outra que foi admitida na escola como auxiliar”, acrescenta João Paulo Silva.

Como se percebe rapidamente, o futsal é uma de entre outras atividades, mas todos valorizam uma equipa sénior que começa com uma formação também ela diferente. “O nosso foco são as pessoas de Canelas e não forçosamente a vertente desportiva. Aqui, qualquer miúdo da nossa freguesia, mesmo que tenha ‘tijolos’ nos pés, tem de jogar como qualquer outro. A prioridade são as nossas crianças.

Para os treinadores é horrível, mas não estamos preocupados em fazer campeões, para isso há outros clubes com outro espírito para o fazerem”, justifica. “Aqui privilegia-se a educação, a formação e dá-se a oportunidade de todos praticarem desporto. Portanto, temos de tornar bons os que temos e a verdade é que, com o tempo, fomos subindo nas classificações. Quando chegamos aqui éramos os últimos em todos os escalões. Agora, subimos os juvenis e os juniores à Elite e no futsal sénior também subimos agora. A nossa abordagem é diferente da que outros clubes têm, mas é aquela que nós achamos que faz sentido no contexto em que vivemos”, sustenta.

João Paulo Silva é hoje presidente, está no clube há mais de 15 anos, mas mesmo assim conseguiram surpreendê-lo no dia da tomada de posse: “Esta direção tomou posse a 2 de maio, mas nem Pinto da Costa conseguiu fazer aquilo que eu fiz, que foi ser eleito uma sexta-feira e ser campeão no sábado (risos). Aquele galinheiro ali [aponta] foi o meu primeiro ato como presidente e foi inaugurado por mim na tomada de posse desta Direção. Foi uma brincadeira da malta do futsal, mas esta é a dinâmica”. Nas instalações do centro há uma horta que também é tratada pelos jovens, produzem-se ovos para os bolos e as bolachas que depois se vendem, mas a preocupação local está sempre bem presente. “Procuramos gastar dinheiro na nossa comunidade e dou-lhe um exemplo: quando precisamos de comprar camisolas para as nossas equipas, preferimos comprar a uma empresa de Canelas, mesmo que até seja um pouco mais caro. Tudo o que seja até 25 por cento mais caro aceitamos como um compromisso que temos com a nossa comunidade. A vantagem é as pessoas conhecerem-nos, saberem qual é o nosso espírito. O objetivo é devolver aos nossos, dar-lhes dinheiro a ganhar”, aponta ainda.

Mas as ideias estão sempre a surgir e uma delas passou pela lavagem de carros, ainda que não tivesse arrancado logo como se pretendia: “Temos aqui cerca de 200 professores na escola e pedimos-lhes para deixarem aqui os carros quando precisassem de os lavar, só que, no início, os miúdos iam para dentro dos carros, ligavam os rádios, tiravam fotos, publicavam nas redes sociais e quando os professores vinham buscar os carros eles ainda não estavam limpos. É preciso perceber que estamos a lidar com pessoas especiais e que foi preciso pegar nas coisas de outra forma para que resultassem, mas faz parte do processo”. Mas há mais, recentemente, a instituição acedeu a uma nova solicitação, que passa por dar auxilio a 13 idosos acamados, prestando-lhes um serviço que ninguém consegue dar na freguesia.

Aos poucos, têm vindo a nascer outras iniciativas, que vão desde a colheita de sangue, a organização de trails e caminhadas promovidas na serra de Canelas e que envolvem desde jogadores da equipa de futsal a seniores da academia. No São João, os responsáveis prometem ter uma barraquinha para servir refeições. “Quem vai cozinhar sou eu e os jogadores da equipa de futsal”, promete o Presidente.

Com tamanha capacidade de resposta do Centro Cultural de Canelas, João Paulo Silva terminou com uma revelação que promete ajudar ainda mais: “Pedi-lhe para antecipar esta reportagem, porque vou ter a seguir uma reunião na Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia, que quer ficar com este projeto e nos pediu para o replicarmos em todas as freguesias do concelho. Isso já nos deixou muito orgulhosos, porque é o reconhecimento do nosso trabalho”.

Projetos desportivos na calha

Nesta fase da época, o ADC Santa Isabel disputa a Taça Complementar, que quer juntar ao título e à subida à Elite. “Não foi uma época fácil, mas sempre disse que se fosse para ficar teríamos de ser melhores, sem perder a nossa essência, com a ajuda de grande parte de pessoas de Canelas, que conhecessem o espírito deste balneário e temos conseguido”, comenta Miguel Canastro, antigo jogador do clube e coordenador do futsal do emblema de Vila Nova de Gaia. “Aceito que digam que fomos uma surpresa, depois das dificuldades por que passamos, com a mudança de treinador no final do ano passado e a saída de alguns jogadores. Mas enchemos o pavilhão em Matosinhos e senti que todos viveram isso, que vibraram com as nossas conquistas. Criou-se uma dinâmica muito forte e muito boa, apesar de tudo.

A formação hoje vê referências nos seniores e isso é muito bom. Daqui para a frente queremos consolidar as coisas na Elite, crescendo com os pés assentes no chão, sem cometer loucuras”, acrescentou ainda, sem esconder uma série de projetos que pretende desenvolver: “Temos projetos para criar futsal feminino e tentar abrir o desporto adaptado, mas sobretudo dar continuidade ao que de muito bom temos feito”.